Mulher de Barro

Desmanchar minha própria imagem em barro e ficar com a essência foi o começo de tudo. Olhar para o futuro, trazer o passado à tona como um fio condutor para viver o presente, essas ações fortaleceram os processos que surgiram durante esse laboratório experimental artístico“Tempo de Carne e Osso”.

Experiência sensorial da obra enquanto, antes de tudo, corpo tátil. Experiência do barro como espelho, objeto de catarse na sua natureza criadora. A ação como transfiguração das dualidades da matéria. Encontros e desencontros, geração e destruição, apego e desapego, gérmen e rastro.

O território fronteiriço que separa a experiência da vida da experiência da arte é explorado na obra Tempo de Carne e Osso, de Christina Machado. O trabalho, iniciado em 2004 e, desde então, por vezes revisitado, parte de atos de construção, lápide e destruição da imagem da própria artista enquanto figura de existência. E, portanto, enquanto objeto de universalização, assim como a matéria em sua condição.

A busca da argila escura de Carnaúba dos Dantas, na região do Seridó, no Rio Grande do Norte, orientou o início da proposta. O ambiente: a magnitude, as cores terrosas, os vestígios rupestres. O corpo ocupa, experimenta, fica pequeno. Até que é envolvido numa urna cerâmica, esculpida em seu entorno. A urna encapsula, anula, guarda, adormece.

Dali a vivência ruma Tambaba, praia de areia clara do litoral paraibano. Chega o momento de libertar as amarras do corpo num molde genuíno, numa réplica mais uma vez refugiada na essência. No barro. No barro enquanto essência. A artista cria sua igual para logo finda-la junto ao mar, numa lavagem lenta e continuada, de retorno à origem.

De ambas as ações restaram registros em vídeo e dois totens: a urna e o molde do corpo da artista jogado ao mar, uma espécie de sarcófago. Totens, agora que o tempo é passado, que o fio motivante da iniciativa está quase rompido. Totens de um tempo em que se abandona a experiência física e que se atinge a fruição distanciada de um fluxo narrativo interior.

O tempo e os registros do tempo acabam por tornar-se o foco conceitual da obra. A artista, num gesto consciente e programado, primeiramente isola urna e sarcófago em cubas transparentes, dentro das quais podem ser analisados, mas não mais experienciados.

Logo é revisto o vídeo enquanto reconstrução documental de uma realidade vivida –dois anos antes, vale lembrar. E nessa volta a um sentimento passado mudam as perspectivas de tempo, mudam o olhar, a ambiência sonora, a afetividade e as manifestações de memória. Fica uma edição natural de marcas que o tempo não conseguiu velar. Fica o registro dos deslocamentos de uma subjetividade com relação aos seus instintos do que já foi e, portanto, já não pode mais ser.

Tempo de Carne e Osso agora consiste na justaposição do registro audiovisual original com um desdobramento, alterado em compasso e percepção. Juntam-se aos vídeos, num mesmo ambiente, a urna e o sarcófago como objetos de contemplação dispostos no centro do espaço expositivo.

Um espaço a ser impregnado pelo ressignificar enquanto poética visual. Pela semântica enquanto terreno da experimentação sensorial. E pela memória enquanto condição inconteste e perene de gérmenes de passado e rastros de futuro.

A performance realizada nos bastidores da Torre Malakoff em 2004 para concepção de suas instalações, parte do vídeo-arte Tempo de Carne e Osso relacionados ao passado e futuro, conclui o trabalho com a ação performática tratando nesse momento do presente e marca um momento fundamental na trajetória da artista. O tema do tempo é recorrente, da busca, da libertação, da vida e da morte. Uma espécie de passagem se impõe com repertório nesse trabalho que acabará sendo mostrado no espaço e reunindo objetos, vídeos, fotografias e a performance realizada pela artista na véspera da abertura da mostra. Tempo de Carne e Osso foi uma experiência que levou a artista a uma superação, criando espaço para desenvolver com o público uma nova relação com o desejo.